A primeira vez que ouvi sobre merreca, era então um piloto de paraglider recém formado. Não entendia porque os pilotos mais experientes tanto falavam daquela tal merreca. A princípio achei que tinha algo relacionado com a ave marreca, porém a prática do voo nos leva ao conhecimento, e não durou muito para constatar na pele o significado de merreca.

Quando ela se faz presente, o espírito humano da solidariedade baixa na rampa. Os pilotos ficam cheios de gentilezas ao oferecerem para outro decolar no seu lugar. Não há brigas por espaços e as conversas giram em torno de assuntos banais, enquanto a merreca domina o pedaço. Não existe ansiedade nos rostos e domina, isto sim, uma placidez nos semblantes. Merreca, além de ser um estado atmosférico caracterizado por poucas ascendentes, é um estado d’alma em que ficamos mais ou menos como as birutas: estaqueados, pano baixo, olhares perdidos.

Merreca é a única vez em que o novatão tem seu papel valorizado. Ele vai decolar de qualquer jeito para o digno prego (voo de pouca duração), por isto os gaviões velhos ficam observando com longo interesse, já que aquele voo será uma espécie de balão de ensaio. O novatão poderá mapear alguma termal canhão escondida nas terras eremas e deflagrar uma corrida na rampa, ou seja, o fim da merreca é também o fim da solidariedade entre os povos e o início da briga de quem decola primeiro para aproveitar o ciclo.

Os pilotos nunca param para pensar sobre a merreca. De onde vem este nome?
A gente entra no voo livre e o adota automaticamente, mas o estado de merreca merece ser estudado, pois longe de ser passividade, ele torna-se ação. Afinal, ouve-se muitas vezes que “tal sujeito merrecou”. Neste caso a merreca, ao contrário daquela de rampa, se transforma num sofrimento atroz. A rapaziada toda estampada e o infeliz merrecado no pouso porque decolou no ciclo errado. Longe de filosofar sobre as diversas facetas da merreca, o desgraçado vai praguejar intensamente contra a sua má sorte.

À medida que um piloto aumenta a sua experiência no voo, seu medo da ação catastrófica de merrecar parece ganhar asas. Pilotos experientes são mais suscetíveis à volúvel fortuna dos ventos. Tendem a sentir com o tempo uma incrível vergonha de merrecar. Tão logo chegam ao chão em virtude de uma merrecada, a maioria nem são mais vistos, ato contínuo chamam seus resgates e se esfumaçam do local do crime.

Encarando as coisas de um ponto de vista mais filosófico, entendo que o estado espiritual da merrecagem é uma rara oportunidade da gente se dar conta que, desafortunadamente, não nascemos com asas. A merreca nos coloca no nosso devido lugar, o de que somos usurpadores de um elemento que não é nosso. Os pássaros, mais precisamente os pássaros planadores, recorrem ao bater de asas ou simplesmente pousam numa árvore, quando a merrecada se instala. Nós não temos este poder e acabamos “caindo” para o nosso desespero.

(Qual piloto não foi atrás de um urubu traidor?)

Desta mesma forma, a merreca pode servir como uma ação recicladora do piloto atento aos desígnios da natureza. Ele pode descobrir que se foi açoitado hoje, amanhã poderá estar brincando com uma farofa, ai terá esquecido da dor, da vergonha e fará questão de comparecer diante dos companheiros.
Logicamente se demorará no bar, pagará algumas cervejas e o seu sorriso será um sol sempre a brilhar. Quanta diferença das merrecadas! Todavia, certamente a merreca estará rondando a sua vida e quando ele menos espera…. tcham! Lá esta ele merrecado numa roubada, com cara de poucos amigos e uma vontade louca de sumir do mapa. Ces’t la vie, dizem os franceses, mas digamos que, para animais nascidos sem asas, até que não podemos reclamar muitos dos Deuses.

Texto de Isaias Malta da Cunha