Outro dia estava assistindo a um programa sobre esportes radicais: um bando de gente pulando das alturas, desafiando penhascos, enfrentando corredeiras sinistras – sem tempo pra sentir medo.

“Esse pessoal não tem amor à vida”, balbuciei entre os dentes. Aí rebobinei meu pensamento e mudei de avaliação. “Esse pessoal ama a própria vida mais do que tudo – eu é que estou desperdiçando a minha na frente da tevê.”

Vida. A única coisa que a gente realmente tem – viemos do nada e para o nada voltaremos. Sempre que me dou conta disso, fico boba com a quantidade de tempo que desperdiçamos fazendo coisas que não gostamos, dizendo amém para o que não concordamos e aceitando as regras pré-estabelecidas em nome da ordem social. No fundo, malucos somos nós, os que não arriscam, os que vivem entre quatro paredes, os que mantém pouco contato com a natureza, os que se protegem contra emoções vertiginosas.

Quem escala uma montanha está mais seguro do que eu, dentro do meu carro estacionado na rua, sozinha, aguardando a chegada de uma amiga. Mais seguro do que eu quando saio do supermercado com as compras, ou quando caminho pelas avenidas da cidade: a violência não está nos ares; não está no esporte, está no cotidiano. Nitroglicerina pura é ter um revólver apontado pra cabeça ou ser ameaçada de agressão. Perigoso é aqui.

Penso noite e dia em como posso dar mais valor à minha vida. Com todos os objetivos alcançados, o que não é pouca coisa, o que faço a partir de agora para manter minha paz de espírito em segurança? Penso em recomeçar do zero, em trocar de cidade, de país, penso em desacelerar, esquecer de tudo o que acreditei até aqui, mudar de religião, inventar outra vida, uma vida mais plausível, menos caótica, menos necessitada de supérfluos, menos refém do tempo. Nunca fui de muitos medos, e de repente me desconsola ler o jornal, encarar as más notícias, enfrentar um mundo em que a gente não pensa “isso nunca vai acontecer comigo”, porque sabe que vai acontecer, somos os próximos da fila.

Eu vejo pessoas saltando de bung-jump, atravessando a nado canais enormes só pelo prazer de quebrar um recorde, todos dublês deles mesmos, e penso que isso, sim, jamais vai acontecer comigo, e não vai mesmo, porque não tenho disposição e nem preparo físico. Mas hoje ao menos os compreendo e sinto uma certa inveja desse medo escolhido, desse medo provocado: ama a própria a vida quem aprende a vencê-lo.

Martha Medeiros

Extraído do livro COISAS DA VIDA, que reúne algumas das crônicas de Martha Medeiros. Analisa e descreve as manias, as delícias, sofreguidões e anseios de homens e mulheres urbanos e modernos, fazendo um verdadeiro retrato de nossa época. Com a franqueza e com o texto dinâmico que lhe são característicos, relata e explica grande parte das taras, neuras e outros produtos mais e menos louváveis de nossa sociedade consumista e, por vezes, conformista – tudo sempre visto de dentro, pois ela nunca se exclui de suas considerações.

Há espaço para todas as normalidades e todas as “esquisitices” que nos caracterizam: o sentimento de frustração, o tique-taque do relógio biológico feminino, a necessidade de dinheiro versus a necessidade de sossego, o progressivo apagamento das fronteiras entre um e outro sexo, máquinas de provocar orgasmos, choros, filmes, livros e músicas, a delícia e a tragédia de não amar ninguém e tantas outras coisas da vida, como os esportes radicais. 🙂