Pássaros criados em gaiolas acreditam que voar é uma enfermidade

Uma reflexão sobre a frase: Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio.

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Tempos atrás, em julho de 2018, encontrei a possível origem de uma das frases de efeito que por aqui somos constantemente bombardeados nas redes sociais, e que inclusive já usamos.

 “Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio.”

A busca nos levou ao livro Religião & Repressão, editado em 1979, por Rubens Alves. O assunto voar, altura, vazio, gaiolas e liberdade é amplamente debatido na introdução da obra.

Quem poderia imaginar?

Só os curiosos que como nós gostam de descobrir a autoria e origem da coisa toda. Sabe como é? Era para desvendar se a frase tinha alguma coisa a ver com o ato de planar pelos céus por meio de asas. E no fim não tinha a ver. 

A outra frase que adoramos; “pássaros nascidos em gaiolas acreditam que voar é uma enfermidade”, é do Alejandro Jorodowsky, que ainda acrescenta: “o ego é uma gaiola sem pássaro, que acredita ser um pássaro sem gaiola”. Isto descobrimos através do artigo Tempo de Liberdade, 19/02/2021, do jornalista Tio Flávio, no Jornal, o H-Hoje em dia.

Pois é, uma coisa puxa a outra, e que puxa outra no mundo das reflexões, e especialmente da literatura, e por isso compartilharemos com vocês as palavras do Rubens Alves, porque vale a pena desenrolar este novelo.

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Introdução do livro de Rubens Alves – 1979

De tudo o que Dostoiévski escreveu em Os irmãos Karamazov; o que mais me impressionou foi o relato sobre o “Grande Inquisidor”. Jesus havia voltado à terra e andava incógnito entre as pessoas. Todos o conheciam e sentiam o seu poder, mas ninguém se atrevia a dizer o seu nome. Não era necessário.

O Grande Inquisidor o observava de longe, no meio da multidão, e ordena que ele seja preso e trazido à sua presença. Então, diante do prisioneiro silencioso ele profere a sua acusação.

Não há nada mais sedutor aos olhos dos homens do que a liberdade de consciência, mas também não há nada mais terrível. E em lugar de pacificar a consciência humana de uma vez por todas, mediante sólidos princípios, tu lhes ofereceste o que há de mais estranho, de mais enigmático, de mais indeterminado, tudo o que ultrapassava as forças humanas, a liberdade.

Agiste, pois, como se não amasses os homens. […] Em vez de te apoderares da liberdade humana, tu a multiplicaste e, assim fazendo, envenenaste com tormentos a vida do homem, para toda a eternidade…

O Grande Inquisidor estava certo. Ele conhecia o coração dos homens. Os homens dizem amar a liberdade, mas de posse dela são tomados por um grande medo e fogem para abrigos seguros. A liberdade é amedrontadora.

Os homens são pássaros que amam o vôo, mas têm medo de voar. Por isso abandonam o vôo e se protegem em gaiolas.

Não me recordo o nome do autor. Mas não importa. O texto vale por ele mesmo e não pelo nome daquele que o escreveu. Eu o reconto com as minhas palavras.

Havia um bando de patos selvagens que voavam nas alturas. Lá em cima era o vento, o frio, os horizontes sem fim, as madrugadas e os poentes coloridos. Tão lindo! Mas era uma beleza que doía. O cansaço das asas, o não ter casa fixa, o estar sempre voando, as espingardas dos caçadores…
Foi assim que um pato selvagem, olhando lá das alturas para essa terra de anões aqui em baixo, viu um bando de patos domésticos. Estavam tranqüilamente deitados à sombra de uma árvore, poupados do esforço de voar. E havia comida em abundância.
O pato selvagem invejou os patos domésticos e resolveu juntar-se a eles. Disse adeus aos seus companheiros, desceu e passou a viver a vida que pedira a Deus.
E assim viveu por muitos anos até que de novo chegou o tempo da migração dos patos. Eles apareciam, lá no fundo do azul do céu, formações em “V”, grasnando, um grupo após o outro. Aquela visão dos patos em vôo, a memória das alturas, aqueles grasnados de outros tempos começaram a mexer com algum lugar esquecido dentro do pato domesticado.
Uma saudade, uma nostalgia de belezas, o fascínio do perigo e o vazio que se abria… Até que não foi mais possível agüentar. Resolveu voltar a ser pato selvagem. Abriu as asas e bateu-se para voar, como outrora, mas não voou. Caiu, esborrachou-se no chão.
Estava gordo demais. E assim passou o resto de sua vida: em segurança, protegido pelas cercas e triste por não poder voar.

Acho que Fernando Pessoa se sentiu um pouco como o pato. Pelo menos é o que sinto ao ler esse poema:

Ah, quanto vez, na hora suave
Em que não me esqueço,
Vejo passar o vôo de ave
E me entristeço!Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invadeUm horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh’alma alheiaUm desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do vôo suave
Dentro em meu ser.

Somos assim. Sonhamos o vôo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o vôo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o vôo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.

É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que se as portas das gaiolas estivessem abertas eles voariam. A verdade é o oposto. Os homens preferem as gaiolas ao vôo. São eles mesmos que constroem as gaiolas onde passarão as suas vidas.

“Prisioneiro”, dize-me, quem foi que fez essa inquebrável corrente que te prende?”, perguntava Tegore. “Fui eu”, disse o prisioneiro, “fui eu que forjei com cuidado esta corrente”.

Rubens Alves prossegue em sua longa introdução sobre Religião & Repressão e que não vem ao caso eu transcreve-la inteira por aqui.

A invocação da “verdade” é o instrumento de que se valem os inquisidores, nas suas múltiplas versões, para matar – ou silenciar – aqueles que têm idéias diferentes das suas. Trata-se de uma tentação universal, possivelmente uma variação da tentação original (“… e sereis como Deus”). Dessa tentação não estão livres nem mesmo as instituições científicas, como mostrou Thomas Kuhn, historiador da ciência…

Deus dá a nostalgia pelo voo. As religiões constroem as gaiolas e quando o voo se transforma em gaiolas, isso é idolatria. Um pássaro empalhado.

Finaliza:

A tentação dos absolutos é uma característica universal do espírito humano. Todos queremos possuir a verdade (quantas vezes ouvimos o que é certo é certo o que é errado é errado, ignorando-se todo o resto que não se encaixa nessas caixas). Para possuir a verdade é preciso que se engaiole a verdade, e para engaiolar a verdade é inevitável que também aprisione toda a liberdade e o pensamento.

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Quem diria que essa frase de efeito é uma crítica e uma afirmação que a possibilidade de admirar-se genuinamente diante do mistério da vida só é possível ser alcançada quando são deixadas para trás as grades opressoras dos discursos dogmáticos. É isso que Rubens Alves queria nos contar quando escreveu: Somos assim: sonhamos o voo… e que mesmo fora do contexto em que foi redigida podemos usar em qualquer outra esfera das nossas vidas que não perde seu sentido e a sua bandeira. A liberdade do pensamento como impulsionadora da ação.

Bons voos, em terra e em céu.

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